

Casamento fantasma, uma tradição milenar na China
Quando Yang Xin Hua e Li Na se casaram, em 2011, ambos já estavam
mortos. Vítima de um acidente de trabalho, Yang havia sido enterrado
dois anos antes e, desde então, sua família procurava o corpo de uma
mulher que pudesse se unir a ele no além. A busca terminou no mês
anterior, quando Li morreu de complicações cardíacas e seus pais
concordaram com o matrimônio, em troca de um "dote" de 100 mil yuans (R$
28,4 mil).
Duramente reprimida durante os anos do maoismo e da Revolução Cultural
(1966-1976), a tradição milenar de "casamentos fantasmas" renasceu com
força depois do processo de abertura iniciado em 1978 e ganhou ainda
mais popularidade em anos recentes. A prosperidade econômica e o
dinheiro movimentado pela indústria do carvão em províncias como Shaanxi
inflacionaram esse mercado, no qual o preço do corpo de uma mulher
jovem pode chegar a 200 mil yuans (R$ 57 mil).
Os 100 mil yuans que desembolsou pela noiva do filho equivalem a cinco
vezes a renda anual do camponês Yang Yu Lin, de 55 anos. "Um corpo custa
mais caro do que uma pessoa viva", disse sua mulher, Shi Cui E, de 52.
O dinheiro saiu da indenização de 200 mil yuans que a família recebeu da
empresa onde o filho trabalhava. Yang Xin Hua tinha 20 anos quando a
retroescavadeira que dirigia caiu em uma ribanceira, provocando sua
morte.
De acordo com a tradição chinesa, homens solteiros com mais de 12 anos
não podem ser enterrados sem uma mulher. Se isso ocorrer, acredita-se
que infortúnios atingirão sua família, incluindo as futuras gerações.
Como nem sempre é possível encontrar uma "noiva cadáver" de maneira
imediata, muitos casamentos ocorrem anos depois da morte. No caso de
Yang Xin Hua, seus pais exumaram seu corpo, o vestiram com roupas
apropriadas e realizaram a cerimônia com o corpo de Li Na, morta aos 22
anos, também vestida para a ocasião e acompanhada de seus pais. O casal
foi enterrado numa nova tumba, na qual foram colocados utensílios de uso
cotidiano, como pratos, toalhas, pentes, espelhos e bonecos de papel
imitando serviçais.
Na parede da casa dos pais do noivo, está pendurada uma montagem com as
fotos de Yang Xin Hua e Li Na. Os dois nunca se encontraram em vida, mas
estão emoldurados numa típica foto de família e enterrados lado a lado. "Estou aliviado. Agora ele vai ter uma vida melhor no além", disse o pai do finado rapaz.
O camponês trabalha como operário na construção civil e ganha cerca de
20 mil yuans (R$ 5,7 mil) por ano. Sua mulher não trabalha e a família
não tem assistência médica gratuita nem Previdência Social. Ainda assim,
gastaram quase 70 mil com o casamento, além dos 100 mil dados à família
da noiva.
O valor incluiu o pagamento
de intermediários, o transporte do corpo, que estava em uma vila a 120
km de distância, a contratação de pessoas que realizaram o
enterro-casamento, a compra de roupas e dos objetos colocados na tumba e
a contratação de músicos para tocar na cerimônia. "Era necessário. Essa
foi a última vez em que gastamos dinheiro com nosso filho", justificou
Yang.
O governo chinês conseguiu instituir a prática da cremação nos grandes
centros urbanos, mas os enterros continuam a ser utilizados na zona
rural, onde vive mais da metade da população do país. Com eles
sobreviveram os "casamentos fantasmas", apesar do violento ataque às
tradições lançado no período de Mao Tsé-tung, que ocupou o poder da
China de 1949 até sua morte, em 1976.
A prática não é encontrada em todo o interior do país. É mais frequente
em certas regiões das províncias de Shaanxi, Shanxi, Henan, Hebei e
Shandong e do município de Tianjin, segundo o professor de Cultura
Popular da Universidade de Xangai Huang Jingchun.
A força das crenças ancestrais fica evidente no fato de que um dos
locais em que a prática persiste é a cidade de Yan’an, principal base
comunista durante a guerra civil contra os nacionalistas e ícone do
"turismo revolucionário" na China.
A poucos quilômetros do local
onde Mao e seus camaradas viveram, fica a Rua Ermalu, onde estão as
lojas que vendem materiais utilizados em funerais. Ninguém se mostrou
surpreso quando uma chinesa perguntou se eles poderiam ajudá-la a
encontrar um corpo para seu primo recém-falecido. Segundo cinco pessoas
consultadas, o preço médio vai de 70 mil a 80 mil yuans (R$ 23mil), mas
pode atingir 200 mil yuans (R$ 57 mil).
No maior hospital da cidade, um funcionário do necrotério estabeleceu o
preço em 200 mil yuans, sem barganha, e disse que era necessário
esperar. Em seguida, deu à chinesa um caderno com uma longa lista de
nomes e telefones de pessoas em busca de corpos e pediu que ela
escrevesse o seu número.
"Celebrar ‘casamentos fantasmas’ não é mais um segredo. As famílias até
divulgam o fato, para mostrar aos outros que cumpriram suas obrigações
com seus filhos e filhas", afirmou o professor Huang.
Não há estatísticas sobre números de uniões de pessoas mortas, mas todas
as pessoas que a reportagem do Estado entrevistou durante três dias em
Shaanxi falaram do assunto como algo longe de ser incomum.
Procura por ‘noivas cadáveres’ aumenta e preço inflaciona
"O ‘casamento fantasma’ é necessário para todo o homem com mais de 12
anos que morre solteiro", afirma de maneira categórica Pang Shende, de
68 anos, integrante da terceira geração de sua família dedicada à
realização de funerais no condado de Hengshen, na cidade de Yulin. Em
chinês, o título de Pang e seus colegas de trabalho é "senhor yin yang",
os mesmos "yin yang" do taoismo que indicam inúmeras dicotomias, como
feminino-masculino, negativo-positivo e lua-sol.
No caso dos responsáveis pelos enterros, a tradução mais apropriada é
"senhor trevas-luz". O nome vem da crença de que essas pessoas têm o
poder de fazer a comunicação e a pacificação entre este mundo e o além.
Durante a Revolução Cultural (1966-1976), Pang foi classificado de
"demônio", proibido de praticar sua profissão e enviado para trabalhar
no campo, como milhões de outros chineses.
Sob as ordens de Mao Tsé-tung, os funerais passaram a ser extremamente
simples e desprovidos dos rituais que haviam sido praticados por
milênios pelos chineses. Com um sorriso vitorioso, Pang lembra que
muitas famílias desenterraram seus mortos depois da Revolução Cultural,
para dar-lhes uma cerimônia condizente com a tradição chinesa.
"Naquela época o governo era muito rigoroso, mas agora não, porque essa é
uma tradição muito antiga, que eles não conseguem controlar", observou
Pang em relação aos ‘casamentos fantasmas’.
Fumar compulsivamente parece ser uma característica comum dos "senhores
yin yang", como típicos homens da zona rural chinesa. No campo, oferecer
cigarros é um gesto de cortesia quase obrigatório, que se repete sempre
que dois homens começam a conversar.
Bai Heng Sheng, de 41 anos, realiza de três a quatro "casamentos
fantasmas" por ano e cerca de dez funerais tradicionais a cada mês nos
arredores da vila Majiashan, a uma hora e meia de carro de Yan’an. "É mais raro pessoas jovens morrerem."
Segundo ele, o número de casos aumentou em anos recentes, assim como o preço dos corpos das "noivas cadáveres".
Na opinião do professor de Cultura Popular da Universidade de Xangai
Huang Jingchun, a inflação se deve ao aumento da renda da população, mas
principalmente à crescente popularidade da cerimônia. "Se os pais ou
parentes não realizam ‘casamentos fantasmas’ para os que morreram
solteiros, eles vão se sentir muito ansiosos e qualquer coisa ruim que
acontecer será vista como um sinal de que eles não cumpriram suas
obrigações em relação ao morto", disse Huang.
Com 76 anos, Zhu Sheng Gui organiza funerais há quase meio século na
vila Zhang Er, próxima de Yan’an. "Na época de Mao, até atuar como
casamenteiro era proibido, mas hoje a superstição nessa região é muito
forte."
Com os frequentes acidentes em minas de carvão de Shaanxi e Shanxi, o
número de jovens do sexo masculino que morrem é maior que os do sexo
feminino, o que acentua o já grave desequilíbrio populacional da China,
onde há mais homens que mulheres.
Com a alta do preço e a escassez de corpos, muitas famílias pobres não
conseguem realizar "casamentos fantasmas" para seus filhos e optam por imagens de mulheres que são colocadas no túmulo ao lado do morto, afirmou Pang.
Prática faz crescer tráfico de corpos
Na Província de Hebei, vizinha a Pequim, 12 corpos desapareceram em
2010, roubados por um grupo organizado que os vendeu por 40 mil yuans
(R$ 11,4 mil) cada. O chefe da quadrilha era o administrador de um
necrotério em Dezhou, na Província de Shangdong, que confessou à polícia
ter ganho cerca de 800 mil yuans (R$ 228,6 mil) em um ano com o tráfico
de corpos.
Em 2007, uma mulher de Shanxi matou uma menina de 12 anos para vender
seu cadáver. No ano anterior, um homem assassinou uma adolescente e uma
prostituta e vendeu os corpos para famílias em busca de noivas para seus
filhos já enterrados.
A crença cria um dilema para a viúva que se casa pela segunda vez. Qual
marido ficará com seu corpo? Quando isso ocorre, a família do primeiro
marido exige que a do segundo assine um documento prometendo que o corpo
da mulher voltará para ser enterrado com ele, o que deixará a família
do segundo com o problema de encontrar uma nova noiva no momento de sua
morte. Os acordos nem sempre são cumpridos, o que cria conflitos que
exigem a intervenção dos "senhores yin yang".
Entendendo a ideia por trás da tradição - Após a morte, a réplica da vida
Os chineses acreditam que a vida depois da morte é uma réplica da real e
se passa em um mundo subterrâneo, no qual as demandas materiais e
emocionais são idênticas às dos vivos. A família dos que vão para o além
tem a obrigação de suprir essas necessidades, sob pena de ser
assombrada ou punida pelos espíritos.
"O ‘casamento fantasma’ não é difícil de entender. As pessoas também
precisam ter uma vida em matrimônio no mundo subterrâneo", disse Huang
Jingchun, professor de Cultura Popular da Universidade de Xangai. As
cerimônias são extremamente elaboradas, com rituais que "guiam" o
espírito para sua nova vida. Para garantir que o morto terá tudo o que
necessita, a família queima reproduções em papel ou papelão de objetos
de uso diário, que se tornam cada vez mais sofisticados na medida em que
a sociedade chinesa enriquece.
Além de casas, dinheiro e roupas, o fogo também consome imagens de cartões de crédito, computadores, iPhones, iPads, carros,
maquiagem, cavalos, geladeiras, ar-condicionado, carruagens, empregados
e até aviões. A maior parte das imagens é industrializada e produzida
em massa. Mas nas vilas rurais, existem artesãos que se dedicam à arte
de criar oferendas de papel de acordo com o desejo do freguês.
O culto aos ancestrais é um elemento central do confucionismo e da
civilização chinesa e, como outras tradições, sobreviveu ao ataque
violento de Mao Tsé-tung ao que classificava de "superstições feudais".
Essa é uma das razões pelas quais ter filhos é tão importante na cultura
chinesa. Sem eles, os que morrem não terão quem os cultue e garanta seu
bem-estar no além.
Fonte: Estadão
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